A REBELIÃO INDÍGENA EM CHIAPAS 

                                                    Douglas Carrara*

 

Resumo:

Estudo histórico-antropológico sobre as rebeliões indígenas no estado de Chiapas no México, desde a conquista espanhola ao movimento zapatista.

 

Palavras-chave: zapatista, Chiapas, México, indígenas, neoliberalismo, rebeliões.

 

 

"Aprisionamos nossas próprias concepções pelas linhas que traçamos a fim de excluir as concepções dos outros"

                                             S. T. COLERIDGE (1772-1834)

 

A rebelião armada indígena iniciada no estado de Chiapas, no México, em 1º de janeiro de 1994, vem criando sérios problemas para a política neoliberal implantada no México a partir do governo Salinas. Entretanto não se trata de um movimento de guerrilhas de orientação marxista, como poder-se-ia supor diante de tantos movimentos guerrilheiros que eclodiram nos últimos anos em diversos países latino-americanos, inclusive, no Brasil na década de 70, no Araguaia.

Na verdade se trata de um novo modelo revolucionário desenvolvido a partir do pensamento indígena ancestral oriundo de formas próprias de organização política que poderíamos chamar de "comunismo primitivo".

O núcleo do chamado Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) formou-se a partir de 1982 na selva lacandona, no estado de Chiapas, com apenas 6 integrantes, 3 ladinos e 3 indígenas de orientação marxista-leninista, como representação de organização urbana sediada na capital. Entretanto o processo de aproximação com as diversas comunidades indígenas foi lento e difícil. Principalmente porque as propostas de cunho marxista de tomada do poder e ditadura do proletariado, por exemplo, não obtinham respaldo entre as lideranças indígenas.

O EZLN somente obteve apoio e pôde se desenvolver quando decidiu aceitar as propostas indígenas de organização, de reivindicações e de luta.

Obviamente havia um potencial revolucionário de tradições seculares, oriundo das diversas rebeliões ocorridas desde a conquista espanhola no século XV e XVI. Entretanto todas estas rebeliões tiveram elementos tragicamente negativos tais como a irresistível tendência dos rebeldes em retirar-se para posições defensivas, o caráter elitista da resistência indígena, sujeitando o movimento a possíveis traições, a limitação da insurreição à própria comunidade, sem estabelecer alianças duradouras com as demais etnias, em virtude de divergências acumuladas através de séculos de convivência extremamente hostil e finalmente o implacável castigo imposto pelos vencedores aos rebeldes derrotados, já que a "pacificação" espanhola sempre foi mais violenta e sangrenta que o levantamento inicial indígena.

Entretanto, desta vez, o levante contou com o apoio das diversas comunidades tzotzil, tzeltal, tojolabal, zoque e chole que participaram ativamente da construção do EZLN assim como da formação do Comitê Clandestino Revolucionário indígena (CCRI), a instância superior de todo o processo de organização zapatista. Por isso o EZLN, enquanto exército regular não dispõe de autonomia decisória, já que todas as decisões militares importantes dependem do CCRI, que por sua vez consulta a comunidade toda vez em que se faz necessário tomar decisões importantes. E tais decisões são exaustivamente discutidas até que se chegue a um consenso, ou a unanimidade ou não se decidir nada, enfim a democracia absoluta. Por isto se proclama em todo o México o lema zapatista: "mandar obedecendo".

O que desejam os indígenas de Chiapas? Simplesmente, Justiça, Liberdade e Democracia. Na verdade são povos que desejam autonomia e direitos constitucionais que lhe assegurem a propriedade coletiva das terras indígenas. Não desejam a guerra. Paradoxalmente, pegaram em armas apenas para torná-las desnecessárias, formando um estranho exército heterogêneo, com armas de todo tipo, desde pedaços de madeira, espingardas de ar comprimido até metralhadoras de última geração, que, quando desfila, costuma levar os mexicanos, às lágrimas.

Querem apenas o direito de cultivar em paz seus roçados de subsistência (milpas), e preservar suas tradições culturais ancestrais, suas danças, seus costumes, sua medicina, sua língua, sua religião, enfim tudo aquilo que os identifica como indígenas e que compõe o que se denomina de "México Profundo", segundo o antropólogo Guillermo Batalla. Enfim os indígenas mexicanos lutam por dignidade, acima de tudo.

A rebelião não ocorreu, entretanto como haviam minuciosamente planejado durante 12 anos, através de reuniões clandestinas, realizadas quase sempre durante a noite na floresta. Depois da ocupação de San Cristobal de las Casas, principal cidade da região, Las Margaritas, Altamirano e Ocosingo, e de uma baixa de 600 zapatistas, o próprio governo federal tomou a iniciativa de decretar unilateralmente a suspensão do fogo a l2 de janeiro de 1994. Neste momento, o EZLN já se preparava para ocupar Tuxtla e invadir Oaxaca e Tabasco, dois estados vizinhos.

Entretanto para surpresa das comunidades indígenas descobriram que não estavam sozinhos. Em todo o México, os mexicanos foram às ruas clamar pela paz.

A partir de então, a guerra transformou-se. Trocaram-se as armas da guerra pela guerra das palavras. Com isso o zapatismo vem transformando o panorama político mexicano, promovendo uma injeção de ânimo em todo o México, que no mesmo dia do levantamento assinava o Tratado de Livre Comércio (NAFTA) com os Estados Unidos incorporando finalmente o México no universo neoliberal. Trata-se, portanto, da primeira manifestação contrária ao modelo neoliberal a surgir em todo o mundo.

O principal porta-voz indígena tem sido durante todo esse longo processo de negociação, o sub-comandante Marcos, suposto professor universitário que abandonou a vida urbana, para abraçar emotiva e profundamente a causa indígena. Todo o movimento zapatista tem se caracterizado pelo uso de lenços (paliacates) e gorros (pasa-montanas), que dificultam a identificação dos integrantes do EZLN, quando viajam para o exterior das áreas livres zapatistas, os denominados “aguacalientes” (uma referência à Convenção realizada na cidade de Aguascalientes em 1914, durante a revolução mexicana), acampamentos construídos no meio da selva onde se reúnem e organizam convenções e até mesmo encontros internacionais para discutirem o próprio movimento e a teoria neoliberal. É interessante ressaltar que toda a história do México tem sido marcada por uma longa trajetória de traições e assassinatos de líderes revolucionários.

As negociações tiveram êxito e, em fevereiro de 1996, a liderança zapatista e delegados do governo federal assinaram os acordos de San Andres Sacamch'en, que garantiam os direitos indígenas não somente de Chiapas, como de todo o México que dispõe de 56 etnias, com língua e cultura próprias, variando de pequenas comunidades de 350 indivíduos (lacandon) até um contingente de quase 2 milhões de indivíduos, falantes de língua nahuatl.

Entretanto até agora os acordos assinados pelas duas partes em litígio não foram cumpridos e incorporados à constituição de 1917, obtida também através de um processo revolucionário e sangrento surgido a partir de 1910.

Por isto os zapatistas continuam organizados militarmente, alternando o trabalho agrícola com o treinamento militar, aguardando o momento de largar definitivamente as armas para retornar à vida tradicional indígena, da qual parece não quererem abrir mão. O governo parece não querer compreender que o indígena zapatista prefere morrer lutando, ainda que com um pedaço de madeira nas mãos do que deixar de ser índio e a condição fundamental para ser índio é dispor de terra para cultivar. Não há, portanto, perspectivas de vitória para o governo. Ou cumpre os acordos de San Andres, já assinados ou invade os territórios zapatistas e promove uma carnificina geral, que pode levar o México a uma guerra civil de dimensões imprevisíveis.

A partir de 1997, surgiu outra organização, desta vez, a nível nacional, a Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), o braço civil da luta zapatista, que admite qualquer cidadão mexicano, desde que não seja filiado a nenhum partido político. Com isso a FZLN se estabeleceu em todos os estados e pressiona constantemente o governo para cumprir os acordos de paz de San Andres.

O impasse evidentemente continua, e enquanto isso o conflito ocorre num processo que se denomina "guerra de baixa intensidade", no qual as partes se enfrentam traiçoeiramente, através de forças paramilitares, constituídas por indígenas filiados ao partido do governo (PRI), que, reunidos em associações civis recebem verbas destinadas à agricultura que são desviadas para a compra de armas, utilizadas para ameaçar comunidades supostamente zapatistas e até mesmo destruir suas casas e plantações e roubar animais, produzindo aproximadamente 6.000 desabrigados.

Inúmeros episódios sangrentos isolados vêm ocorrendo desde o início do conflito armado, entretanto a situação parece ter ficado sem controle a partir do massacre de Acteal, quando 45 indígenas, entre idosos, crianças e mulheres, da associação civil "Las Abejas", organização pacifista e que não concordava até então com os métodos zapatistas, foram massacrados dentro de uma pequena capela, quando rezavam pela paz, no dia 22 de dezembro de 1997. Em torno de 200 paramilitares, identificados depois como militantes do partido do governo na época (PRI), invadiram a igreja católica, fortemente armados, eliminando todos que se encontravam no local e que não puderam fugir. Depois da chacina, profanaram os corpos de mulheres grávidas, retirando e matando os fetos, com o facão (machete). . .

Evidentemente este episódio sangrento e bárbaro gerou protestos do mundo inteiro que tem condenado os métodos que estão sendo utilizados para acabar com o conflito. Esta pressão internacional tem provocado reações inusitadas do governo que vem deportando inúmeros observadores internacionais, que vão a Chiapas, na tentativa de criar um escudo protetor do movimento indígena zapatista, que cada vez mais, vem obtendo a simpatia de inúmeras ONG's (organizações-não-governamentais) do mundo inteiro.

Entretanto já existe um consenso de que não se trata de um movimento separatista e nem mesmo anti-mexicano. Pelo contrário os indígenas querem continuar fazendo parte orgulhosamente da nação mexicana. Entretanto querem um México efetivamente pluralista, que não se envergonhe de seu passado indígena, e que ao invés de desindianizar os indígenas, ajude-os a desenvolver plenamente sua cultura, seus costumes e garanta a dignidade, seus direitos civis e a soberania indígena.



* Douglas Carrara é antropólogo, escritor e professor, autor de "Possangaba - O Pensamento Médico Popular".


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