TOTALITARISMO, SOCIALISMO BUROCRÁTICO OU DOGMÁTICO?

 

José de Britto Roque*

        

Resumo:

O artigo coloca em evidência usos e abusos do conceito de totalitarismo e reflete sobre as limitações da noção de socialismo burocrático para tipificar o regime político da antiga URSS.  

 

Palavras-chaves: totalitarismo, lei de ferro da oligarquia, socialismo burocrático, socialismo dogmático.

 

 

 

Assim como a noção de totalitarismo não conseguiu, até agora, desprender-se do formalismo, por um lado, e do feeling ideológico liberalista, por outro, de modo análogo, a expressão socialismo burocrático – hoje usual no vocabulário de especialistas – também parece precária, presumindo-se que siga ela na mesma esteira do enfoque teórico liberal.

         Na verdade, a noção de socialismo burocrático (que se supõe ter sido cunhada por Trotsky) foi incorporada pela esquerda intelectual francesa nos anos 60, desencantada com o socialismo real experimentado na URSS e nos países do leste europeu. As revelações sobre a era stalinista, o esmagamento da rebelião húngara em 1956 e a intervenção soviética na Tcheco-Eslováquia, em 1969, transtornaram a esquerda européia. Esta se afastara cada vez mais do comunismo ortodoxo, porém, conservava o sentimento de que o socialismo ainda se constituía numa promessa de realização dos ideais de justiça social e de humanização como alternativa ao capitalismo. Em suma, a nova esquerda fustigava a URSS e o partido comunista como continuadores de um stalinismo sem Stalin, porém, não rompia em definitivo com o marxismo, presumindo salvar o ideal socialista – o socialismo com rosto humano – o que lhes parecia ter sido completamente comprovado pelas perversões da experiência soviética. Esta bem podia ser considerada como uma falsificação contraposta ao ideal socialista, do verdadeiro socialismo com face humana.

         Mas falar em socialismo burocrático pode parecer tecnicamente inadequado, senão redundante, pelo menos, de um certo ponto de vista da sociologia política. Foi Max Weber (1979) quem primeiro vislumbrou o socialismo vinculado à fatalidade burocrática do Estado moderno. Julgava Weber que o socialismo, para realizar seu projeto de justiça social igualitária, teria de reforçar e ampliar os componentes organizacionais típicos do Estado moderno: mecanismos administrativos de controle, de previsão e cálculo da produção, distribuição e consumo dos bens econômicos. Isto implicaria em novas formas de regulamentação das atividades produtivas, do trabalho, da propriedade, quer dizer, planejamento estatal centralizado.

         Dentro dos quadros e do sentido cada vez mais racionalizador da sociedade industrial moderna, o socialismo, então, iria exigir uma necessária expansão da burocratização das atividades sociais tout court. O antídoto  proposto por autores marxistas que assimilaram a crítica weberiana (o próprio Lenin, inclusive) estaria em manter o partido comunista  (revolucionário) desvinculado do aparato estatal, mantendo-se como o instrumento revolucionário de crítica das massas na luta vigilante contra as tendências  burocratizantes da máquina estatal. Mas, ironicamente, um discípulo de Weber que militava na social-democracia alemã, Robert Michels, escrevia um ensaio que se tornaria um clássico na sociologia dos partidos políticos.  Michels tomou como seu objeto de estudo o mais vigoroso dos partidos socialistas europeus: a social-democracia alemã do início do século. Seu estudo concluía que a burocracia era uma fatalidade das organizações modernas e que nem mesmo um partido socialista de massas conseguia escapar ao que ele denominou de “lei de ferro das oligarquias” (1970). No modelo leninista do partido como vanguarda revolucionária das massas, de que meios efetivos estas poderiam dispor para exercer algum controle sobre as decisões do partido, conjurando, em tempo, aquela “maldição” predita por Michels a toda organização moderna?

         Todavia, a expressão “socialismo burocrático”, permaneceu ao que parece restrita nos meios da esquerda trotskista até os anos 50, para designar e qualificar o sistema soviético implementado por Stalin. Para Trotsky, a revolução proletária permanente deveria ultrapassar os limites da ordem mundial capitalista dividida em estados nacionais. A luta de classes em escala mundial promovendo um completo triunfo da revolução comunista liquidaria de um só golpe as estruturas burocratizantes e opressivas próprias do moderno estado burguês; que sustentam a racionalidade capitalista da produção de mercadorias e, em conseqüência, a exploração do proletariado em nível mundial.

         Mas o fracasso da revolução bolchevique levada além das fronteiras da Rússia, como por exemplo, na Alemanha, na Polônia e na Hungria, nos anos 20, levou o partido bolchevique liderado por Lenin, a concentrar sua estratégia na consolidação do socialismo na Rússia, no enfrentamento da guerra civil, da intervenção e das ameaças de cerco das potências capitalistas. O leninismo promovia, assim, a ditadura do proletariado sob a direção única e centralizada do partido bolchevique. O que nas condições extremas da Rússia do pós-guerra  consistia em promover a industrialização e acelerar a produção agrícola; quer dizer, modernização rápida. Sintomaticamente, Lenin definia então o socialismo, na etapa da ditadura do proletariado, como “eletrificação + poder soviético”. Suprimida qualquer forma de oposição aos métodos bolcheviques, particularmente após o esmagamento dos sovietes rebelados em Kronsdadt, em 1921, o partido e o Estado se fundem controlando todas es atividades sociais. Simultaneamente, o partido e sua direção definem e traçam as diretrizes e metas a serem rigorosamente cumpridas, nomeando todos os cargos de direção das empresas, os quais ficam responsáveis perante a comissão executiva do partido pelo cumprimento de suas tarefas. O não cumprimento das diretrizes e metas, qualquer que seja o motivo, é interpretado, em tais circunstâncias, como “sabotagem”, “traição” ou “conspiração”. Essa direção hiper-centralizada da ditadura do proletariado no estado-partido bolchevique e sua ideologia se constitui no modelo de construção do socialismo inaugurado por Lenin e que Alfred Stepan chama de “socialismo de comando” (1980).

         Sob Stalin, o socialismo de comando leninista amplia e consolida as estruturas do Estado Soviético e do partido, no sentido da burocratização, estimulada, em parte, pela planificação. A industrialização acelerada, a coletivização forçada e massiva das terras agrícolas e as circunstâncias da 2a guerra nos anos 30 e 40 ampliaram, ainda mais, o perfil burocrático do regime soviético[1].

         Contudo, há que se considerar que o burocratismo já previsto por Weber como uma característica intrínseca ao próprio socialismo nas condições da racionalidade moderna, assume uma configuração específica no caso da URSS e dos países do leste europeu,  porque ela se identifica com  uma concepção doutrinária monolítica com forte conotação profetista e messiânica, que se auto-denomina como “científica” e que se afirma como única e verdadeira intérprete de um sentido pré-determinado e fatal da História. Essa doutrina que, a partir dos anos 30 passou a ser adotada não só na URSS mas em todos os partidos comunistas  se constituiu no marxismo-leninismo. Ela definiu, doravante, a postulação das orientações teórico-práticas do socialismo real e dos partidos comunistas filiados ao Komintern por um sentido dogmático.

         Assim, o dogmatismo doutrinário cristalizado no período stalinista não só definia o modelo tido como verdadeiro para uma autêntica construção socialista – armado com a “ciência do marxismo-leninismo” – como recusava toda e qualquer divergência, qualquer mínima oposição à direção executiva do partido, logo considerada como “direitista”, “revisionista”, “anti-partido”, etc.

         Essa postulação doutrinária dogmática do marxismo-leninismo condicionou a interpretação teórico-prática do que seria a ditadura do proletariado e determinou ideologicamente e politicamente a construção do socialismo real, tanto na URSS quanto nos países do leste europeu. Nesses regimes, as estruturas sociais e estatais moveram-se sob forte coerção ideológica e política no sentido da máxima homogeneização social, pela mobilização continuada e intensa dos quadros do partido e das organizações de massa, visando a uma totalização socialista absoluta. Todavia, o que se produziu foi um sistema de totalização dogmática, desde que Lenin já havia descartado que nenhuma instância de subsidiariedade  (indivíduo, família, associação civil ou religiosa, propriedade, etc.) poderia ser reconhecida de pleno direito e, portanto, considerada, enquanto a ditadura do proletariado não tivesse completado plenamente a transição para uma sociedade integralmente socialista. O dogmatismo erigido assim à condição de “linha correta” do partido-estado, bloqueou e anulou qualquer outra possibilidade de um experimento socialista mais orgânico e menos sectário e coercitivo.

         Socialismo burocrático, se nos situarmos na perspectiva weberiana soa, assim, como uma redundância, não definindo, a rigor, o que há de específico no socialismo real e no tipo de totalização que ensejou promover. Neste caso, estamos procurando interpelar a essência mesma deste sistema e recusando uma interpretação que pretende defini-lo apenas por uma de suas variáveis. Pois a organização burocrática ainda que assuma no socialismo real dimensões mais abrangentes, não parece ser suficiente para uma caracterização que possa dar conta do sentido mesmo daquela experiência histórica além da superfície.

         Se as grandes burocracias são fruto da racionalidade moderna e próprias das estruturas do Estado moderno qualquer que seja o modo de produção, quer capitalista quer socialista, isto é, quer sustentando a propriedade privada quer promovendo a propriedade coletiva dos meios de produção,  o elemento “burocrático” não se mostra suficiente para, por si só, revelar a natureza particular dos regimes que prevaleceram no leste europeu até a queda do muro de Berlim. O burocratismo é parte importante do socialismo real, mas não o define em sua natureza ontológica.

         Desse modo, pode-se sugerir que as análises interpretativas da história mais recente da URSS e dos países do leste europeu revelem sinais que apontam para contradições culturais, étnicas, religiosas e sociais que prevaleceram no contexto desses países, malgrado todo  esforço  coercitivo daqueles regimes em alcançar uma última síntese histórica, isto é, por meio de uma totalização forçada e não espontânea. Por outro lado, por paradoxal que possa parecer, a debilidade orgânica do socialismo real – revelada pela rápida implosão daqueles regimes – parece demonstrar quão frouxos eram os laços de lealdade para com o sistema, apesar da propalada “consciência socialista”. Por que então não se falar mais adequadamente em socialismo dogmático, ao invés de burocrático?

         Esses sinais parecem, portanto, sugerir que as análises voltadas para uma interpretação dos regimes socialistas que prevaleceram no leste europeu devem orientar-se mais para o campo cultural e intelectual se pretenderem desvendar as características próprias que imprimiram ao ideal socialista e ao marxismo revolucionário a configuração particularmente “totalitária” e dogmática que assumiram.

         Neste ponto merece destaque as reflexões que o historiador ítalo-francês Giogio Locchi (1990) propõe no campo da história das idéias e da filosofia política, assumindo uma postura nitidamente crítica com relação ao uso que se tem feito da palavra “totalitarismo” elevada ao nível de categoria analítica, porém com fins puramente ideológicos que não se deixam ocultar.

         Locchi, que tem feito estudos interessantes sobre o fascismo de um ponto de vista da filosofia política e da filosofia da cultura, mas abarcando o vasto campo da história da cultura do Ocidente, sustenta que o problema do chamado “totalitarismo”  remete a uma questão fundamental da filosofia política. A rigor, Locchi considera que toda sociedade (ou mais exatamente, comunidade) aspira, quando quer integridade e sanidade, por ser totalitária. Trata-se aqui de uma aspiração por homogeneidade, no sentido de que se admite  um só “discurso”, o que é inspirado pelo princípio que informa e conforma a comunidade e que, por sua vez, venha constituir o “vínculo comunitário”, preservando sua integridade. Nesse sentido, não faltariam, segundo Locchi, exemplos históricos a enumerar:

“Asi la ecumene católica no admite más que el discurso cristiano en el catolicismo y hoy los sistemas democráticos, tras el período de crisis e de confusion de ideas de la primeira postguerra, no admiten – como es lógico, por outra parte- más que el ‘discurso democrático’ y prohiben terminantemente el ‘discurso fascista’, que esta inspirado en un ‘princípio’ oposto.” (Locchi, 1990, p. 38).

         Todavia, Locchi sustenta que autores liberais têm insistido na similitude da estrutura política “totalitária” imposta por regimes fascistas e comunistas, e comodamente, cunharam a expressão genérica “totalitarismo” que se presta para igualizar esses dois regimes, ocultando o que há de substancial diferença no modo de organizarem a vida social e no sentido que, em última instância, imprimem a existência. O termo, viciado na origem, serviria apenas como arma de combate ideológico, sem conter qualquer validade científica. Não descarta, contudo, a validade cognitiva de categorias como “totalitário”, “totalitária” (particularmente no caso do Fascismo) para identificar uma concepção e uma prática no sentido de totalizar as relações humanas em seu conjunto.

         Neste debate teórico sobre a pertinência de tais categorias na análise de conjunturas histórico-concretas devemos lembrar que a perspectiva liberal, desde sua mais genuína metafísica, jamais considerou a noção de totalidade social, razão pela qual, o modo como exerce o atual monopólio do discurso da “democracia” esclarece, como contraposto, a lógica do discurso do “totalitarismo” e os limites de sua serventia na era da globalização.

         Em suma, é a lógica da anti-política, da “negatividade”, que afirma como único “positivo”  o discurso liberalista-parlamentar da democracia.

 

Bibliografia:

 

LOCCHI, Giorgio. La esencia del fascismo. Buenos Aires: Ed. Tizona, 1990.

MICHELS, Robert. Os partidos políticos. São Paulo: Editora Senzala, 1970.

STEPAN, Alfred. Estado corporativo e autoritarismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1979.



*  O autor é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[1]  Numa versão paretiana da substituição de “elites no poder, uma elite revolucionária deu lugar a uma nova elite de técnicos e burocratas destinada a pôr em execução as tarefas dos planos qüinqüenais; o que seria brutalmente ensejado pelos expurgos de 1934 e 1938”.


Fechar