A IDEOLOGIA ENQUANTO DESUMANISAÇÃO
PLANEJADA
Marcelo Cavalcante*
Passa sob o sol os olhos na cruz /
os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã / vão levar ao reino dos
minaretes / a paz na ponta dos aríetes, / a conversão para os infiéis.
(Agnus Sei, João Bosco - Aldir Blanc)
Excetuando-se as psicopatologias
individuais, é razoável a suposição de que a idéia genérica de felicidade
permeia todas as sociedades e que podemos encarar a história da humanidade como
uma incessante aventura de uma busca espiritual num mundo de inteira e
definitiva materialidade. Sob um aspecto filosófico, dentre tantas convicções,
podemos ficar com a síntese que nos induz a crer que “devemos ter em conta que o dever do homem é ser feliz. Todos os atos
do homem deviam destinar-se a isso: fazê-lo feliz. A vontade de viver mais e
viver bem moveu o processo civilizatório. Viver mais e viver bem é também viver
em paz”. (SANTAYANA, 1995: 96). Sob uma perspectiva científica, de recorte
pós-moderno, podemos buscar explicações na teoria da hiperdesespecialização do
cérebro humano, que nos condena a uma mediação, através da cultura, com a
natureza, e que, isto seria o fato distintivo entre a humanidade e os demais
componentes vivos da natureza. Por esta idéia, temos a junção da antropologia
filosófica de M. Scheler (que contrapõe o “terreno
teológico, fundamentador de uma posição especial do Homem no Cosmos a partir de
sua relação de semelhança com Deus, para colocar no centro da análise a
oposição entre Homem e Animal”) com a de A Gehlen (que aponta a
incapacidade do homem de “sobreviver
dentro das condições de um meio ambiente puramente ´natural`, pois ele não
possui, ao contrário do que ocorre com os animais, órgãos e instintos fixamente
adaptados a um dado meio circundante fechado”, a nos indicar que esta
“abertura para o mundo” implica como “imperativo
de sobrevivência construir o mundo cultural como Natureza socializada (...)
através da construção de si mesmo como pessoa por meio de atos espirituais”.
(BARTHOLO JR., 1986: 18 - 20). Neste contexto, o suporte de tal estrutura
residiria na garantia de estabilidade das relações entre o homem e o mundo,
pois “numa realidade sujeita ao tempo e
necessariamente mutável o máximo de estabilidade consiste numa repetição
periódica e cíclica dos mesmos eventos, tal como a Natureza o demonstra da
maneira aproximada”. No transcorrer da história, temos que pensamentos
hegemônicos atuaram nesse sentido (magia/religião) e que hoje repousam na
técnica que se integra “no interior de um
contexto existencial moldado pela cultura” no qual “o Homem pode encontrar o seu domicílio no Mundo, e toda formação
sócio-cultural repousa sobre instituições, que expressam um sistema de hábitos
estabilizados, viabilizadores de um alívio da sobrecarga existencial que seria
imposta ao Homem por uma permanente formação improvisada de motivação. As
instituições possibilitam que a formação de motivação passe a ser fixada em
objetos do meio circundante exterior, que por sua vez passam a servir de pontos
de apoio para as decisões e fornecem ao comportamento uma garantia de
durabilidade”. (BARTHOLO JR. 1986: 25).
De toda sorte, vivemos numa arena de
fatos que são mediados pela cultura, que são executados, interpretados e
narrados, com maior ou menor aproximação, dentro dos limites da
inteligibilidade humana. O homem lê o mundo consoante seus sentidos e sua
apreensão da realidade historicamente condicionada. Sob tais imperativos, a
cultura se nos apresenta como o alfabeto, a linguagem que nos permite ler as
coisas do mundo e nos impede uma existência de pura factualidade, onde a
sucessão dos fatos não se coaduna nem se interpenetram, fatos isolados, sem a priori ou a posteriori. Este traço distintivo fundamental da humanidade se
apresenta como “Se a vida do animal se dá
num suporte atemporal, plano, igual, a existência dos homens se dá no mundo que
eles recriam e transformam incessantemente. Se, na vida do animal, o aqui não é
mais que um ´habitat` ao qual ele ´contacta`, na existência dos homens o aqui
não é somente um espaço físico, mas também um espaço histórico”. (FREIRE,
1975: 105).
Desta forma, não obstante a
precariedade, é neste espaço espiritual-simbólico, que a humanidade produz e
reproduz as suas ações sociais, conforme as suas culturas diferenciadas, que
nada mais são que diferentes leituras da realidade. Nesta perspectiva, a
realidade humana ganha a multiplicidade de um caleidoscópio infinito, em função
das diferentes culturas que, por sua vez, não conformam com exatidão os
diferentes seres – humanos mergulhados em inescrutáveis sonhos, ambições e
expectativas individuais. Por aparentar auto-evidência, somos levados a
comungar com a idéia de que esta leitura do mundo se dá na medida exata das
possibilidades do leitor, ou seja, cada indivíduo apreende o mundo conforme suas
experiências de vida, seus apetrechos de leiturabilidade. Isto pode ser
enunciado tanto sob uma ótica de pretensa neutralidade, onde “O que um homem vê depende tanto daquilo que
ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou a
ver”. (KUHN, 1994: 148), quanto imbuída de juízos de valor, onde “O julgamento de um cidadão do mundo
ocidental é diferente do de um biafrense que morre de fome”. (ECO, 1993:
109).
Fatalmente
o enunciado generalizante e aparentemente pacífico - a conclusão de que a
leitura da realidade está condicionada à cultura e, mais ainda, às experiências
individuais dos viventes - ganha magnitude e se radicaliza quando efetuamos um
mergulho no seu interior e buscamos as razões e questionamos a introdução de
“ruídos” que interferem na avaliação baseada única e exclusivamente no
livre-arbítrio, seja de caráter bíblico ou filosófico.
Existem alguns condicionantes
auto-evidentes que conformam e imprimem determinado caráter a uma leitura de
mundo e, grosso modo, esta leitura humana da realidade, está condicionada a
linhas mestras tais como: vida e morte, bom e mau, amor e ódio, finito e
infinito, universo, terra, que apesar de serem construções precárias e, em
grade parte, arbitrárias, são as historicamente dadas e que garantem a
estabilidade do “ser no mundo”. Essas macro-estruturas atuam na horizontalidade
e se encontram mais ou menos livres na esfera pessoal que produz e reproduz os
entendimentos da realidade quando individualizada, ou seja, quando o ser
humano, de forma individual traduz entendimento sobre a sua existência pessoal
que, em certa medida, entendemos como livre arbítrio. Esta liberdade nos
explica, por exemplo, a existência de uma “rede de opiniões” multifacetada,
conflitiva, contraditória e multivariada, uma verdadeira miscelânea da alma
humana.
Quando a leitura de mundo se reporta à
realidade dos interesses coletivos, aos fatos sociais, estrito senso,
observamos a interferência de forma vertical neste abecedário de ler a
realidade. Aí reside a radicalidade do pensamento ideológico que atua como
verdadeiro instrumento de falseamento e subversão do “real” enquanto realidade
histórica das culturas. Por mais que os fatos sociais possam ser relativizados,
eles estão confinados a determinadas lógicas, mesmo que arbitrárias e
convencionais, que permitem a sua inteligibilidade histórico-social. Estes
fatos não podem ser livremente manipulados consoante vontades e/ou interesses
momentâneos e dinamicamente cambiantes, sob pena de se esvaziar de sentido o
próprio alfabeto. Não pode a cor azul se transmutar em branca pela manhã,
vermelha no período da tarde, cor-de-rosa durante a noite, amarela na madrugada
e romper o dia sendo roxa, pois não fixaríamos um entendimento convencional da
cor branca e muito menos das demais cores, ou seja, ingressaríamos na Babel
bíblica onde quando alguém falasse branco, alguns interlocutores entenderiam
vermelho, outros cor-de-rosa, outros tantos amarelo, aqueloutros roxo e assim
por diante.
Desta forma e apesar da filosofia, as
convenções culturais representam o extremo limite para as relativizações,
independente das nossas possibilidades de questionarmos a essência de todo o
arco íris, os matizes, as aquarelas e os reflexos dos vitrais. Da mesma forma,
num mundo onde impera um conhecimento reconhecidamente precário onde as
verdades são probabilísticas, temos que nos submeter a esta precariedade e
validar o “alfabeto” possível de ler o mundo. E neste alfabeto o branco
permanece branco independente das conveniências, mesmo quando estas possibilitem
lucros fantásticos ou mesmo o domínio do planeta, pois, se a precariedade é a
condição de existência, a sua subversão representa a ininteligibilidade do
mundo mediado e lido através da cultura.
Assim como a atividade
científico-tecnológica predatória coloca em risco o planeta sob os seus
aspectos físicos, a excessiva manipulação simbólica pode nos conduzir a um
mesmo fim, pois os riscos de entropia são físicos e simbólicos.
Cada vez mais fica patente que a
questão da verdade supera os labirintos indecifráveis e que a ponderação da
filosofia grega sobre a impossibilidade da verdade, enquanto coisa em si, se
contraposta à atualidade, era uma pretensão sofisticada, uma vez que, na virada
do milênio elaboramos uma insanidade que nos interdita até a “verdade”
simplificada dos fatos corriqueiros, e caminhamos para uma situação limite onde
o branco se finge de preto, azul, amarelo, vermelho, dependendo do figurino de
conveniências e interesses dos poderosos e da conivência e hipocrisia gerais.
Este exercício absurdo (verdadeira
privação dos sentidos), nos remete diuturnamente a um questionamento da
manipulação dos fatos e mais precisamente da ideologia enquanto desumanização
planejada do outro. Incidentes prenhes de suporte ideológico e mesmo
manipulação grosseira desfilam num incontável e interminável rosário ante quem
ainda tem olhos para ver e a razão ainda não foi embotada. Os meios globais de
comunicação de massa expõem as suas vísceras, num espetáculo dantesco que
debocha da razoabilidade humana, como se coisa natural, líquida, certa e justa.
Um controle de corações e mentes onde “tamanha
hipocrisia e tergiversação passam sem comentários, torna-se evidente que os
meios de comunicação de massa mantêm um sistema de controle do pensamento capaz
de estabelecer e sustentar esta grande mentira tão eficazmente quanto qualquer
outro sistema de censura estatal”. (CHOMSKY e
HERMAN, 1986: 188).
Entre os tantos exemplos que pululam na virtualidade tecnológica de
recorte espetaculoso, podemos destacar como caso exemplar o atentado aos
Estados Unidos e seus desdobramentos, que desnudam a trágica condição que a
desmesura humana está a nos impor enquanto realidade revestida de verdade e,
portanto, legitimidade. Promovem o strip-tease
pornográfico da farsa imposta ao concerto das nações e, por trás da aparência e
das formalidades, decretam o colapso de um Direito Internacional que
engatinhava em cueiros de insinceridades e espertezas.
Há que se constatar que,
diferentemente do direito interno das nações-Estado, o esboço até então
delineado para um efetivo concerto das nações sob a égide de um direito
planetário prescrevia um consenso baseado na adesão. Ao passo em que, no
direito interno, os cidadãos se submetem compulsória e coercitivamente a um
estado de direito representado pelo Estado, no plano internacional, temos um
pacto entre iguais (autodeterminação e soberania) e sem os requisitos
coercitivo-legais, uma vez que o alcance das leis se dá através de tratados
livremente acordados.
Quem tem olhos de ver e sinceridade de reconhecer,
formará convicção de que as ações desenvolvidas pelos Estados Unidos ao longo
da crise instalada pelo atentado ao WTC, não guardam minimamente nenhum pudor
ao transgredirem todos os sacrossantos postulados pelos quais se arvoraram
criadores e defensores. Democracia, soberania e autodeterminação dos povos
foram transformados em escombros quando o lobo aposentou a pele do cordeiro.
Este processo de tirania dos povos, através da força incontrastável, já havia
sido ensaiado em diversos episódios encetados pelas forças opressivas
americanas em todo o mundo. Decerto que os nefastos e ilegais (sob o ponto de
vista do Direito Internacional) acontecimentos de Hiroshima/Nagasaki, Vietnã,
Granada, Guatemala, Costa Rica, Iraque, Malvinas/Falklands, Líbia, Cuba e
tantos outros crimes contra a humanidade não poderiam deixar dúvidas para a
comunidade internacional que a conversa civilizada sobre direitos e justiça,
servia apenas para adormecer o boi, pois se necessário e/ou conveniente, a
imposição viria (como sempre veio) através da força de um exército devidamente
apetrechado com o que de melhor e mais eficiente a ciência e a tecnologia
puderam inventar e desenvolver com o dinheiro das multinacionais.
Mais perversa e profunda que a matança indiscriminada de “cholos
baratos” mundo afora, é a submissão proxeneta, a subserviência de nações que
não têm pejo de negociar valores, honra e caráter, em troca de migalhas de
dólares de um FMI caudatário de sistemas de poder. Dólares estes que nada mais
são que o retorno do que lhes foi arrancado sob a forma espoliativa de
trabalho, matérias primas ou juros de agiota.
A nação mais poderosa do planeta, em consórcio com o mundo
“civilizado”, se acumpliciou com guerrilheiros para combater um dos países mais
pobres e derruídos, sob o olhar complacente e conivente da comunidade
internacional, numa empreitada onde tudo é permitido e nada se submete ao crivo
das leis e muito menos da razão. Estes sucessos indecorosos ensejaram a
construção do maior e mais abrangente arco de alianças pela via da hipocrisia
já montado sobre o planeta. Sob a escusa inconsistente de combate ao
terrorismo, os Estados Unidos da América e o restante G7 aliaram-se a
terroristas narcotraficantes, bombardearam um país miserável e desestabilizaram
um regime até então legítimo, pois que legitimado pelos próprios americanos e
premiado pela ONU por combater o tráfico de entorpecentes. Sob a vontade
imperial de uma nação poderosa e a permissividade obsequiosa do concerto das
nações, os talibãs dormiram bonzinhos e acordaram magarefes da humanidade,
devidamente demonizados por erros, reais e fictícios, que cometeram ou não no
transcurso de cinco anos de governo.
Neste varejo histórico de
incidentes e justificativas, resta-nos a certeza, subsumida pelos estados
nacionais, de que se instaurou, na prática e sem maiores dissimulações, a lei
do mais forte e corrompeu-se em definitivo com as noções de soberania e autodeterminação
dos povos. Por se recusar a entregar o senhor Osama bin Laden, o Afeganistão
foi bombardeado, sob a escusa de que o que está ocorrendo não é uma guerra
contra o país, mas sim contra o terrorismo.
Recentemente, em meados de dezembro de 2001, o estado brasileiro negou
o pedido de extradição do general Lino Oviedo, acusado de vários assassinatos,
entre eles o do vice-presidente do Paraguai, no ano de 1999. O governo
paraguaio continuará cumprindo os trâmites legais, tudo conforme as leis. Pela
nova jurisprudência firmada (e acatada pelas nações civilizadas) nesta
barafunda, caso as vítimas fossem cidadãos americanos e o vice-presidente
ianque tivesse sido assassinado por um general que se asilara no Brasil,
teríamos todos os ingredientes “legais” para que Washington enviasse sua
máquina de guerra contra Brasília. Aliás, a Casa Branca diria (e o mundo fingiria
acreditar) que estava apenas combatendo o terrorismo e o governo de FHC e não o
povo brasileiro. Enquanto despejasse toneladas de bombas sobre Brasília,
enviaria também alguma comida para os famintos da periferia da capital. Apesar
do jus esperniandis e da (necessária)
mortandade de candangos, sem-terra, desempregados e excluídos em geral, nossa
elite em Miami, assistiria as imagens distribuídas globalmente pela CNN, a
comprovarem o quanto o senhor George Bush é democrata, legalista e humanitário,
mesmo quando se trata de coibir abusos cometidos por lideranças de países
inexpressivos de costumes e línguas arrevesadas.
O desprezo que os Estados Unidos da América devotam aos países
periféricos desafia tudo que a ciência foi capaz de desenvolver no plano
social, particularmente nas questões sobre raça e etnocentrismo. As ponderações
elaboradas por Lévi-Strauss vão muito além de um alerta sobre os equívocos
inerentes aos preconceitos raciais e que tal combate poderia redundar num
resultado de “formular a doutrina racista
às avessas”. (LÉVI-STRAUSS, 1970: 232). Observando as tantas reatualizações
do pensamento etnocêntrico, que consiste na “atitude mais antiga e que se assenta sem dúvida em fundamentos
psicológicos sólidos, pois tende a reaparecer em cada um de nós quando se nos
depara numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as
formas culturais – morais, religiosas, sociais, estéticas – mais afastadas
daquelas com que nos identificamos”. (LÉVI-STRAUSS, 1970: 236). Esta
atitude tende a encaminhar a uma recusa em “admitir
o próprio fato da diversidade cultural”, que leva à violência de “lançar fora da cultura, na natureza, tudo
que não se harmoniza com a norma sob a qual se vive”. (LÉVI-STRAUSS, 1970:
236).
Na atualidade, robustecido pelo desenvolvimento
científico-tecnológico, o etnocentrismo assume feições totalitárias,
solidificando estruturas que viabilizam a exclusão e ampliam as deformações
referencias, comungando um delírio de imposição de uma monocultura de
específico recorte ocidental, apesar de sabermos que “esta adesão ao gênero de vida ocidental, ou a alguns dos seus aspectos,
está longe de ser tão espontânea quanto os ocidentais gostariam de crer”.
(LÉVI-STRAUSS, 1970: 253). O projeto em curso tem como agravante a estreiteza
da bitola que o transporta, uma vez que preconiza a prevalência de valores
capitalistas, imperialistas e totalitários. A anulação do afastamento diferencial entre as culturas deixa claro que a junção
do projeto de globalização e a vigência etnocêntrica norte-americana esbarram
na “noção de civilização mundial como uma
espécie de conceito-limite”, pois que esta só poderia ser viabilizada
através de uma “coalizão, na escala
mundial, de culturas que preservam cada uma, sua originalidade”.
(LÉVI-STRAUSS, 1970: 265/266).
Mesmo aventurando-se a um mergulho no cipoal das relativizações
extremas e aceitando-se que “Como se
sabe, a hipocrisia permite dispor compromissos entre o reconhecimento teórico
dos valores e sua violação”. (ECO, 1993: 111), não podemos encontrar
razoabilidade na existência de um jogo no qual suas regras podem ser
impunemente violadas por um dos contendores, sob pena de não existir jogo, mas
sim um simulacro, uma celebração ritual da hipocrisia enquanto valor universal.
Tudo indica a impossibilidade de um jogo no qual as regras podem ser
impunemente violadas por um dos contendores.
Meses atrás assistimos o mundo como um
todo a celebrar e legitimar, através de imagens onipresentes, o paradoxo de
afegãos em suas roupas típicas buscando sobreviver aos horrores
psico-tecnológicos de uma agressão, em contraposição a uma reunião na Alemanha
onde os decisores dos destinos do país envergavam ternos de corte ocidental a
caracterizar uma simbologia bizarra, que explicita a face de imposição
cultural. Neste quadro, a mensagem inequívoca é a da legitimação da cultura
ocidental-mercadológica e a barbarização
das demais.
As condições impostas desafiam o senso comum e ultrapassam o razoável,
mas encontram vigência através de um global falseamento deliberado da
realidade, através do qual se expressam a hipocrisia de largo curso e a
subserviência de dúbia moral. Na bitola estreita de tais artificialismos se
elabora o truque, o abracadabra ideológico, que consiste em dar legitimidade ao
ilegítimo num mesmo movimento em que deslegitima o que é. Através de uma
prestidigitação suicida, consolidamos, na virada do milênio, a implosão do
imperativo lógico no qual “O que é, é. O
que não é, não é” e conferimos atualidade ao dito de que “a boca acostumada a dizer ´viva`, diz viva
até em enterro”.
Temos
o alfabeto que pode decifrar os caminhos da justiça, da equidade e da
convivência pacífica e civilizada e nos resta apenas lê-lo de forma honesta,
retomando o método baconiano para exorcizar os ídolos que hoje representam a
ganância desmedida por privilégios que nos têm transformado em tolos hipócritas
a cultivar uma conivência que pensamos ser vantajosa, mas que serve apenas a
outros senhores e outros interesses.
Bibliografia:
BARTHOLO JR.,
Roberto S. Os labirintos do silêncio.
Marco Zero/Coppe/UFRJ: São Paulo, 1986.
BOURDIEU,
Pierre. O poder simbólico, Difel:
Lisboa, 1989.
CHOMSKY, Noam
e HERMAN, Edward S. “Os Estados Unidos contra os direitos humanos no terceiro
mundo”, In. A Trilateral – Nova fase do
capitalismo mundial, ASSMAN,
SANTOS, Theotônio dos e CHOMSKY, Noam (Orgs.), Vozes: Petrópolis, 1986.
ECO, Umberto.
“Rápida utopia”, In. Reflexões para o futuro, Abril: Rio de
Janeiro, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1975.
KUHN, Thomas
S. A estrutura das revoluções científicas,
Perspectiva: São Paulo, 1994.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e Cultura”, In. Raça e Ciência, Perspectiva: São Paulo, 1970.
SANTAYANA,
Mauro. “O terceiro estado nacional”.
In. Em defesa do interesse nacional,
Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1995.
Resumo:
O presente
artigo objetiva discutir o processo ideológico face ao desenvolvimento
exponencial do aparato científico-tecnológico, tendo em vista a hegemonia do
pensamento neoliberal.
Palavras-chave:
Ideologia, meios de comunicação de massa, ciência e tecnologia, cultura e poder
simbólico.
*
Marcelo Cavalcante é graduado em
Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), M. Sc. (COPPE/UFRJ), pesquisador da FESO,
publicou os livros Saga dos perplexos,
Sol rente e Antologia dos esquecidos.