Resenha do livro “Ministério do
Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula:
1927-2005”, de Lucas Figueiredo. Record, 2005.
César Maurício Batista da Silva*
Defenestrado por se referir aos
parlamentares que investigam as denúncias de corrupção no governo Lula como
“bestas feras”, o ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) acertou
no que não viu. Sem saber, jogou luz sobre a história do órgão a que serviu,
sublinhando a pertinência de uma obra recém lançada, “Ministério do Silêncio”
ajuda a compreender que o episódio, longe de representar um ato isolado,
petulante e inconseqüente – note-se que a declaração do ex-araponga-rei foi
feita através de comunicado disponível na “intranet” do órgão –, é mais uma
amostra, ainda que mínima, da autonomia institucional e funcional que sempre
marcaram o serviço secreto brasileiro.
Ao mesmo tempo em que sistematiza a
bibliografia sobre o tema, o jornalista do Estado de Minas nos
proporciona contato com documentos e espaços da organização institucional
brasileira até então nebulosos à vista pública. Com a leitura sabe-se, por
exemplo, da existência do Centro de Informações do Exterior (CIEX), serviço
secreto do Ministério das Relações Exteriores, em algumas oportunidades confundido
com o serviço secreto do Exército (CIE). Segundo Lucas Figueiredo, sua
composição exclusivamente civil, com diplomatas de carreira formando seu corpo
de agentes, permitiu que passasse desapercebido por historiadores do regime
militar. O autor se refere a pelo menos uma missão do CIEX, em meados dos anos
de 1970 (acompanhou os passos no exterior do ex-assessor sindical de João
Goulart, José Gomes Talarico), comprovada através de uma das peças que compõem
a farta documentação que sustenta a obra. O CIEX ainda vigiou no exterior
exilados como Brizola e o próprio Jango.
Mas reputo que sejam outros dois
momentos os mais instigantes da obra. Primeiro, a pré-história. É detalhada a
informação de que, se o Serviço (forma sucinta pela qual o autor designa
o serviço secreto) foi parido Serviço Nacional de Informações (SNI), por
Golbery do Couto e Silva, foi gestado desde o governo Washington Luís, no
Conselho de Defesa Nacional. Instituído em novembro de 1927, o Conselho não
contava com espiões. Não ia muito além de uma grande mesa-redonda onde
ministros de Estado trocavam e analisavam informações que já possuíam. Malgrado
sua inoperância frente ao objetivo de municiar o Presidente da República com
informações, já ali se configurava uma das características que nunca mais
abandonariam o Serviço: regulamentação vaga, ampla e evasiva, perfeita
para que se pudesse fazer o que se quisesse contra quem se desejasse.
Vargas amplia a estrutura com a criação
das chamadas Seções de Defesa Nacional, escritórios dentro dos ministérios
civis. Mas também improvisa. Na falta de um serviço secreto formal, lança mão
da Polícia do Distrito Federal e do Ministério da Guerra como serviços secretos
clandestinos. Dutra cria oficialmente o primeiro serviço secreto brasileiro em
julho de 1946, o Serviço Federal de Informações e Contra-Informação, cuja sigla
tem pronúncia próxima a um espirro: Sfici. O órgão é criado a reboque da
valorização do papel dos serviços secretos nos países centrais no contexto da
incipiente Guerra Fria. A “ameaça vermelha” nunca seria esquecida pelo Serviço,
não apenas como trauma, mas também como justificativa da própria existência. Se
não havia agentes externos dessa ameaça, que fossem eleitos alvos dentro das
fronteiras. Ainda que só viesse a ser montado efetivamente em 1956, por
determinação de Juscelino, o Sfici também já trazia na pele outras duas marcas
indeléveis: a subordinação aos militares (ficou ligado ao Conselho de Segurança
Nacional, novo nome do antigo Conselho de Defesa Nacional); e o combate aos
“inimigos internos”. O ano de 1961 representa um marco nessa história. É quando
Golbery ingressa nas fileiras do Sfici. E também representa o início do período
mais explorado pela literatura.
O segundo destaque do “Ministério do
Silêncio” é a história contemporânea do Serviço. No momento de retorno
dos civis ao comando do Executivo e com as expectativas da opinião pública
apontadas para a construção de um Estado democrático, o SNI muda a maquiagem,
mas não de personalidade. Procura parecer mais transparente, cultivando uma
imagem institucional mais positiva. Seu chefe passa a conceder entrevistas
regulares, algo inconcebível anteriormente, e, segundo o autor, “planta”
notícias na imprensa a respeito de supostas operações. Mas continua promovendo
ações clandestinas, escutas telefônicas ilegais, combatendo prioritariamente um
“inimigo interno”, manifestações políticas e culturais consideradas “de
esquerda”, classificadas como “perigo para a sociedade”. Além disso, a falta de
um controle externo lhe garantia impunidade e autonomia de ação. Nas palavras
do autor: “Sob Sarney, O SNI teve uma transformação bizarra: em vez de diminuir
de tamanho (como seria lógico) e de ser desmilitarizado (como mandava a
prudência), passou a ter ainda mais atribuições, ampliando sua agenda.” (p.
378).
Por conta de desavenças durante a
campanha eleitoral de 1989, Fernando Collor extingue o SNI no mesmo dia em que
toma posse: 15 de março de 1990. Sem definir novas diretrizes institucionais,
Collor cria o Departamento de Inteligência (DI). Relegado a um simples
departamento, não mais ligado diretamente à Presidência da República, o Serviço
também perdeu a coordenação da “comunidade de informações”, desmanchada com o
fim dos laços formais entre ele e os serviços secretos da Marinha, do Exército
e da Aeronáutica. Esvaziado institucionalmente e financeiramente - sofreu grave
enxugamento de pessoal e cortes de recursos –, pela primeira vez seria dirigido
por civis. Porém, o Serviço mostraria que enverga, mas não quebra.
Sobrevivente da “Constituição Cidadã” de 1988, um serviço secreto tão viciado
não havia de ser desmontado com uma canetada, apenas. A definição de
atribuições fluida e a falta de controles externos permaneciam alimentando o
seu sentimento de autonomia. A partir do governo de Itamar Franco, nova
inflexão. Nesse período se dá a remilitarização do órgão, que volta a ganhar
espaço. Após longa resistência, rende-se às novas regras de contratação do
serviço público em vigor desde 1988 e promove, em 1994, o primeiro concurso público
para o serviço secreto.
Sob o governo do ex-exilado Fernando
Henrique Cardoso, o Serviço ganha novo fôlego. Em novembro de 1999 o
Parlamento aprova o projeto do governo que cria a ABIN. Ela, porém, não vinha
sozinha. Foi criado, também, o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) que,
sob coordenação da ABIN, abarcava diversos órgãos da administração pública
federal e, caso se fizesse necessário, também estaduais. Renascia,
incrementada, a “comunidade de informações”. “(...) enquanto a velha comunidade
reunia algumas dezenas de organismos, a nova abrigaria centenas. Com uma só
tacada, a ABIN colocava no bolso informações da Receita Federal, da Polícia
Federal, dos Correios, da Anatel, da Previdência Social, do Incra, do Detran,
do Banco Central, etc. Era como se o Serviço estivesse absorvendo o
Estado novamente.” (p. 495). Não obstante isto, a criação da ABIN foi
comemorada por incluir a previsão de uma comissão do Congresso responsável pelo
seu controle externo. O tempo mostrou, e Lucas Figueiredo nos lembra disso, que
era vão o regozijo. Até pelo menos março de 2005 – já na segunda metade do
governo Lula – essa comissão não sairia do papel.
Entre as contribuições de uma
sistematização da história do Serviço acompanhada da divulgação de
material de pesquisa e investigação inédito, destaca-se a retomada de
informações oportunamente tornadas públicas, agora compreendidas como parte de
processos mais amplos. À guisa de exemplo, temos as já sabidas mudanças nos
prazos de divulgação de documentos oficiais empreendidas por FHC, amplamente
divulgadas na época. No apagar das luzes do seu governo – na sua última semana
–, o presidente-sociólogo baixa um decreto dilatando os prazos de restrição ao
acesso público a documentos sigilosos produzidos pela “comunidade de
informações”. “Assim, os documentos sobre o golpe militar classificados como
secretos deixariam de ser liberados à consulta pública em 2004, ficando
indisponíveis até 2024. No caso dos ultra-secretos, esse prazo pôde ser
esticado até o fim dos tempos.” (p. 517). A prorrogação do prazo de sigilo de
documentos classificados como ultra-secretos, até então permitida uma única
vez, passou a ser possível ad infinitum. A contextualização oferecida
por “Ministério do Silêncio” nos permite entender essa informação como parte de
um processo de retomada da força do Serviço iniciado com Itamar e incrementado
por FHC.
E como seria a relação entre o antigo inimigo, Lula, agora Presidente, e
o Serviço, que muitas vezes fez as vezes de “guarda pretoriana” do chefe
do Executivo? A resposta do autor é direta: “O PT desconsiderou tudo aquilo que
pregara para o órgão durante décadas e seguiu a cartilha dos militares.” (p.
526). Também nessa ceara as tais “bandeiras históricas” soam como parolagem
estratégica. Ou cheiram a engodo mesmo. Lula manteve a militarização do órgão,
desistiu de acabar com sua atuação no campo interno e, em um primeiro momento,
manteve agentes oriundos do antigo SNI na direção executiva da ABIN. Como se
não bastasse, propôs, ainda no primeiro ano de sua gestão, a dilatação dos
poderes da Agência, encampando uma antiga proposta do “monstro” de Golbery:
legalizar a utilização de grampos e escutas por parte do Serviço. Quanto
ao decreto de FHC a respeito dos prazos de divulgação dos documentos da “comunidade
de informações”, Lula, que poderia simplesmente revogá-lo, ou orientar sua
bancada a apoiar um projeto de lei que já tramitava no Congresso, de autoria da
deputada Alice Portugal (PCdoB) que dele daria cabo, preferiu a inércia. Apenas
a repercussão da infeliz nota do Exército que, em resposta à retomada do caso
Vladmir Herzog, acusou a imprensa de “revanchismo” e exaltou a repressão
militar contra os “subversivos”, fez o Presidente mover-se. Voltou aos prazos
anteriores, mas manteve a esdrúxula possibilidade de manutenção do veto ao
acesso público eternamente, para alguns documentos.
Além de propiciar um completo panorama
histórico do Serviço, “Ministério do Silêncio” mostra de perto o seu
papel em episódios como o da bomba do Riocentro, dos grampos do BNDES (onde
ficou patente o envolvimento do governo FHC com consórcio concorrente às
privatizações) e até mesmo no recente caso Waldomiro Diniz, mostrando a
contribuição, para o caso, do racha interno entre os funcionários da própria ABIN.
Primeira peça do dominó de escândalos do governo Lula a cair, este caso motivou
o depoimento de um agente da ABIN acusado de envolvimento, e que ensejou a
malfadada manifestação do ex-chefe recém-demitido.
Lucas Figueiredo nos mostra que,
passados 78 anos, as marcas do Serviço não foram maculadas:
militarização, ausência de controle externo, regulamentação fluida e evasiva de
suas competências, eleição do campo interno – movimentos sociais, culturais e
populares – como alvos, inimigos a serem combatidos. Mais ainda: que, se essas
marcas foram tatuadas na pele da nossa História primordialmente durante o
regime militar inaugurado em 1964, seus mais recentes incrementos se deram em
governos civis, o último dos quais, governo petista. “Ministério do Silêncio”
nos remete à instigante tese de Jorge Zaverucha, mostrando que ela mantém sua
atualidade. Isso nos faz questionar se a transição do híbrido regime que
tipificou os anos 1980 para o atual nos conduziu a um Estado realmente
caracterizado pelo controle civil democrático. Seja como for, as sombras, tão
caras ao Serviço, ainda assustam, mas são hoje menos discretas.
* O autor
é mestrando de Ciência Política do PPGCP/IFCS.